quinta-feira, 16 de agosto de 2012

O barro tem memória



Numa sala de jantar, muito bem decorada, uma senhora colocou com muita ternura, um pote feito artesanalmente pelas suas próprias mãos, num móvel com espelho. Esse pote viu pela primeira vez o seu reflexo e o seu espanto foi tal, que não pode evitar exclamar: «Inacreditável!!!». Não conseguia parar de se olhar, tal era a sua admiração pelos seus traços finos e delicados. Principiou então, a contar a sua história às restantes peças de decoração – “Nem sempre fui assim. Comecei por ser um pedaço frio, duro e opaco de barro…”
Um dia, estava no lodo, pois era lodo também, e vi chegar uma senhora que se abeirou de mim, me tomou e levou-me para casa. Na sua habitação, de um tabuleiro que cobriu com um pano, fez-me uma cama, onde me deixou repousar, como se de uma longa e cansativa viagem tivesse acabado de chegar.
No dia seguinte, porem, levou-me para cima de uma mesa e, sem razão aparente, começou a enrolar-me e a bater-me, como se estivesse a castigar-me por ter abusado da sua hospitalidade, sentindo-me demasiado confortável naquela caminha. Bateu e bateu, não se importando com o meu lamento de dor. Implorei que parasse, mas ela parecia não me escutar, até que respondeu: “ainda não!”. Assim, continuou até fazer de mim um rolo. Pensei que por fim, poderia descansar, deixar sarar as feridas, mas a tortura estava apenas a começar. Levou-me para cima de uma roda onde girei sem parar, aconchegada pelas suas mãos firmes, para que não pudesse fugir. Dizia que me estava a centrar à roda, como se eu percebesse ou quisesse perceber o que isso era. Enjoada e tonta, senti os seus dedos, como facas a penetrarem o meu corpo, parecia que me queria desventrar. Não cessava de me questionar o que estava ela a fazer e com que objetivo. Como se ouvisse o meu uivo de indignação, respondeu que fazia “puxadas”. Lá puxar, puxava! E sem se deixar comover com a minha dor.
Finalmente, sentindo-me ainda a andar à roda, mas sabendo-me sustentada apenas pelas mãos da oleira, vi-a transportar-me para uma prateleira. Preferia que me tivesse levado para a caminha da noite anterior, onde poderia afagar as feridas, escondida dos seus olhares. Na prateleira estava completamente exposta. Não havia direito! Mas melhor era estar ali sossegada, que voltar para a roda! Disso não tinha dúvidas.
Acordei sobressaltada com o calor do abraço das suas mãos. Mãos que pareciam tão meigas, transportando-me como algo valioso… mas que sabiam magoar-me tanto. Pegou em mim apenas para me voltar de cabeça para baixo. Deixou-me ali a fazer o pino, como se fosse um bobo da corte. No entanto, as horas passaram tranquilas, enquanto me divertia um bocadinho a observar o mundo ao contrário. Uma e outra vez, veio fazer-me festas. Dessas festas eu gostei. Eram ternas.
A sua bondade durou pouco. Após exclamar «Já está no ponto couro», levou-me novamente para a roda e eu, sabendo já o que me esperava, senti-me imediatamente angustiada. Desta vez, cortou-me mesmo! Desbastou-me, como ousou explicar.
Deixou-me descansar novamente na prateleira, mas não por muito tempo. Havia algo mais a fazer, enquanto estava no que ela chamava ponto couro. Passou-me algo por cima, parecia que me queria vestir um vestido qualquer. Parece que o vestido se chamava engobe. A mim suou-me a coisa fina. Como nunca tinha envergado qualquer tipo de vestuário, não me importava que me vestissem um simples bibe. Estava tão dorida, que pouco ou nada apreciei o toque aveludado do liquido. Depois, a mesma senhora arranhou e escarafunchou o meu vestido que era a minha nova pele, fazendo-me sangrar. Estava farta de todo aquele sofrimento! Sonhava com o charco onde ninguém me importunava, onde o vento me afagava e o sol me aquecia… Em pranto fui colocada novamente na prateleira. Odiava aquela prateleira, odiava aquela sala. Odiava o dia que deveria nascer novamente para me fazer sofrer agonias que nem consigo descrever. Desta vez, no entanto, o sol vez a sua ronda, sem que alguém me tocasse. Como este, outros dias tranquilos se seguiram e eu, já mais calma, começava a sentir alguma esperança de que não voltasse a passar por tal experiência.
Certo dia, fui colocada dentro de uma caixa muito grande com outras coisas que não sabia o que eram. Fui conversando com algumas e descobrimos que tínhamos nascido no mesmo lugar e passado por experiências idênticas. Confortámo-nos umas às outras, sentindo-nos um pouco menos sozinhas no nosso sofrimento. Quando a porta da caixa foi fechada, começámos a sentir muito, muito, muito calor. Não era nada parecido com o calor do sol. Era muito forte! Comecei a ficar desidratada, muito seca e dura. Hoje sei que me submeteram a temperaturas de 1200 graus celsius. A pouco e pouco a temperatura começou a baixar. Por fim, abriram a porta e eu voltei para a prateleira, sozinha. O pó começou a pesar sobre o meu bordo. Pensei que se tivessem esquecido de mim… Hoje, foram-me buscar. Limparam-me com muito cuidado e colocaram-me aqui.
A história da nova peça de decoração foi escutada com toda a atenção pelos restantes objetos. Muitas vezes, surgem na nossa vida situações e acontecimentos dolorosos que não compreendemos. No entanto, eles foram essenciais para nos moldar naquilo que somos hoje, por muito angustiantes que possam ter sido. São essas experiências que nos afinam o coração a estar mais desperto para o que nos rodeia e para os outros que vivem ao nosso lado. São esses acontecimentos que fazem com que sejamos mais delicados, pacientes, fortes e convictos dos nosso valores, etc. Como esta peça de decoração, acabamos por descobrir que são eles que dão origem à nossa beleza interior. 

História de M.ª Luísa  Martins dos Ramos Santos - minha mãe
2012  

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