Numa sala de jantar, muito bem decorada, uma senhora
colocou com muita ternura, um pote feito artesanalmente pelas suas próprias
mãos, num móvel com espelho. Esse pote viu pela primeira vez o seu reflexo e o
seu espanto foi tal, que não pode evitar exclamar: «Inacreditável!!!». Não
conseguia parar de se olhar, tal era a sua admiração pelos seus traços finos e
delicados. Principiou então, a contar a sua história às restantes peças de
decoração – “Nem sempre fui assim. Comecei por ser um pedaço frio, duro e opaco
de barro…”
Um dia, estava no lodo, pois era lodo também, e vi
chegar uma senhora que se abeirou de mim, me tomou e levou-me para casa. Na sua
habitação, de um tabuleiro que cobriu com um pano, fez-me uma cama, onde me
deixou repousar, como se de uma longa e cansativa viagem tivesse acabado de
chegar.
No dia seguinte, porem, levou-me para cima de uma
mesa e, sem razão aparente, começou a enrolar-me e a bater-me, como se
estivesse a castigar-me por ter abusado da sua hospitalidade, sentindo-me
demasiado confortável naquela caminha. Bateu e bateu, não se importando com o
meu lamento de dor. Implorei que parasse, mas ela parecia não me escutar, até
que respondeu: “ainda não!”. Assim, continuou até fazer de mim um rolo. Pensei
que por fim, poderia descansar, deixar sarar as feridas, mas a tortura estava
apenas a começar. Levou-me para cima de uma roda onde girei sem parar,
aconchegada pelas suas mãos firmes, para que não pudesse fugir. Dizia que me
estava a centrar à roda, como se eu percebesse ou quisesse perceber o que isso
era. Enjoada e tonta, senti os seus dedos, como facas a penetrarem o meu corpo,
parecia que me queria desventrar. Não cessava de me questionar o que estava ela
a fazer e com que objetivo. Como se ouvisse o meu uivo de indignação, respondeu
que fazia “puxadas”. Lá puxar, puxava! E sem se deixar comover com a minha dor.
Finalmente, sentindo-me ainda a andar à roda, mas
sabendo-me sustentada apenas pelas mãos da oleira, vi-a transportar-me para uma
prateleira. Preferia que me tivesse levado para a caminha da noite anterior,
onde poderia afagar as feridas, escondida dos seus olhares. Na prateleira
estava completamente exposta. Não havia direito! Mas melhor era estar ali
sossegada, que voltar para a roda! Disso não tinha dúvidas.
Acordei sobressaltada com o calor do abraço das suas
mãos. Mãos que pareciam tão meigas, transportando-me como algo valioso… mas que
sabiam magoar-me tanto. Pegou em mim apenas para me voltar de cabeça para
baixo. Deixou-me ali a fazer o pino, como se fosse um bobo da corte. No
entanto, as horas passaram tranquilas, enquanto me divertia um bocadinho a
observar o mundo ao contrário. Uma e outra vez, veio fazer-me festas. Dessas
festas eu gostei. Eram ternas.
A sua bondade durou pouco. Após exclamar «Já está no
ponto couro», levou-me novamente para a roda e eu, sabendo já o que me
esperava, senti-me imediatamente angustiada. Desta vez, cortou-me mesmo! Desbastou-me,
como ousou explicar.
Deixou-me descansar novamente na prateleira, mas não
por muito tempo. Havia algo mais a fazer, enquanto estava no que ela chamava
ponto couro. Passou-me algo por cima, parecia que me queria vestir um vestido
qualquer. Parece que o vestido se chamava engobe. A mim suou-me a coisa fina. Como
nunca tinha envergado qualquer tipo de vestuário, não me importava que me
vestissem um simples bibe. Estava tão dorida, que pouco ou nada apreciei o
toque aveludado do liquido. Depois, a mesma senhora arranhou e escarafunchou o
meu vestido que era a minha nova pele, fazendo-me sangrar. Estava farta de todo
aquele sofrimento! Sonhava com o charco onde ninguém me importunava, onde o
vento me afagava e o sol me aquecia… Em pranto fui colocada novamente na
prateleira. Odiava aquela prateleira, odiava aquela sala. Odiava o dia que
deveria nascer novamente para me fazer sofrer agonias que nem consigo
descrever. Desta vez, no entanto, o sol vez a sua ronda, sem que alguém me
tocasse. Como este, outros dias tranquilos se seguiram e eu, já mais calma,
começava a sentir alguma esperança de que não voltasse a passar por tal
experiência.
Certo dia, fui colocada dentro de uma caixa muito
grande com outras coisas que não sabia o que eram. Fui conversando com algumas
e descobrimos que tínhamos nascido no mesmo lugar e passado por experiências
idênticas. Confortámo-nos umas às outras, sentindo-nos um pouco menos sozinhas
no nosso sofrimento. Quando a porta da caixa foi fechada, começámos a sentir
muito, muito, muito calor. Não era nada parecido com o calor do sol. Era muito
forte! Comecei a ficar desidratada, muito seca e dura. Hoje sei que me
submeteram a temperaturas de 1200 graus celsius. A pouco e pouco a temperatura
começou a baixar. Por fim, abriram a porta e eu voltei para a prateleira,
sozinha. O pó começou a pesar sobre o meu bordo. Pensei que se tivessem
esquecido de mim… Hoje, foram-me buscar. Limparam-me com muito cuidado e
colocaram-me aqui.
A história da nova peça de decoração foi escutada
com toda a atenção pelos restantes objetos. Muitas vezes, surgem na nossa vida
situações e acontecimentos dolorosos que não compreendemos. No entanto, eles
foram essenciais para nos moldar naquilo que somos hoje, por muito angustiantes
que possam ter sido. São essas experiências que nos afinam o coração a estar
mais desperto para o que nos rodeia e para os outros que vivem ao nosso lado. São
esses acontecimentos que fazem com que sejamos mais delicados, pacientes,
fortes e convictos dos nosso valores, etc. Como esta peça de decoração,
acabamos por descobrir que são eles que dão origem à nossa beleza interior.
História de M.ª Luísa Martins dos Ramos Santos - minha mãe
2012